quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O labirinto de Francesco Clemente


Apresento algumas pinturas do artista italiano Francesco Clemente. São obras desenvolvidas para o filme “Grandes Esperanças (Great Expectations)”. Lançado em 1998, este drama é uma adaptação moderna do clássico romance de Charles Dickens. Clemente produziu mais de 200 trabalhos para integrar o longa-metragem. 


As obras são essenciais para a narrativa. O personagem principal, Finn, é um jovem pescador que possui dons artísticos desde criança. Com 20 e poucos anos, recebe o convite para expor em Nova York. A mostra é um sucesso e Finn vende todos os trabalhos na vernissage. A realização profissional é importante na história, pois significa a entrada do protagonista para o mundo dos ricos. Um passaporte para conseguir a garota que ama.



Os desenhos de Clemente dão vida a esse universo criativo do personagem. São tão impactantes em cena, que, na primeira vez que assisti “Grandes Esperanças”, as obras me causaram profunda estranheza. Porém, percebi que aquelas imagens ficaram na minha cabeça por muito tempo.


A cada oportunidade de rever o filme, mais fascinado fiquei com a obra do artista, a ponto de buscar seus trabalhos produzidos para além do cinema. Encontrei, então, uma coleção de inúmeros trabalhos, realizados desde a década de 1970 até hoje. O italiano pinta autorretratos, seres híbridos, figuras explicitamente sexuais, cenas religiosas ligadas ao hinduísmo e até celebridades.

Clemente vale-se de várias correntes artísticas, como renascimento, surrealismo e expressionismo. É considerado um dos principais expoentes da Transvanguarda, movimento italiano da pós-modernidade. Cunhada em 1979, a Transvanguarda libera seus artistas para transitar por qualquer época ou estilo do passado, com expressividade de cores e referências.



Desvendar as obras de Francesco Clemente não é uma tarefa fácil. Pouco se encontra de informações sobre o artista na internet. O destaque vai todo para as suas criações. A partir daí, a interpretação é livre. Figuras deformadas, grotescas, metamorfoseadas. Um universo ora onírico ora realista.



No filme, os principais personagens são representados em desenhos, tanto nos créditos iniciais quanto nos quadros da exposição do protagonista. As distorções, ao mesmo tempo que parecem se afastar da aparência dos atores, também se aproximam dos mesmos. Encontra-se a alma dos personagens naqueles traços de aquarela, grafite e giz colorido.




De onde vem essa estética? Essa força visual? Essa presença artística? Francesco Clemente oferece uma visão particular de enxergar o mundo. Carrega suas obras de emoção, de repulsa, de ternura, de crítica social e de infinitas possibilidades.



O que possuem em comum, na sua maioria, são grandes olhos. Estão ali, em cada ser representado. Olhos abissais, como dois pontos magnéticos nas imagens. Assemelham-se ao trabalho da pintora norte-americana Margaret Keane. Haveria alguma inspiração? Difícil dizer. Influências claras no trabalho de Clemente são de Andy Warhol e Basquiat, uma vez que foram amigos e vizinhos em Nova York.


Fora as referências, os olhos ainda permanecem na minha cabeça. Olhos que olham o espectador. Há uma espécie de cumplicidade com aqueles personagens. Não sorriem. Apenas miram apreensivos. Parecem estar dividindo suas angústias mais íntimas.



O artista retrata esses seres, o mundo ao redor e suas interações. Retrata o que vê, o que lhe concede sentido ao mundo. Uma realidade de várias verdades, interpretações e diversidade de expressões. É múltiplo em temas e desconstruções. Cada peça traz uma arte conceitual, desde as obras minimalistas até painéis gigantes nos quais ocorre uma explosão de elementos, cores e significados.

Sendo um artista que tanto perturba quanto hipnotiza, Francesco Clemente diz que não acredita na pureza. Acredita em contaminação, em encontros de diferentes culturas. Sua arte é, realmente, contaminada. Contaminada de tudo um pouco, menos de prisões.


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