Em 2024, o surrealismo completou cem anos. Mesmo tendo surgido como um movimento artístico na Paris dos anos 1920, seus ideais ainda influenciam a cultura contemporânea. Como pesquisador em Artes Visuais e Cinema, fui procurado pela
Revista Riviera, publicação paulistana que se encontra na 36ª edição (Janeiro/2024), para comentar sobre esse marco histórico que rompeu as barreiras da lógica. Segue abaixo os trechos completos da entrevista e os recortes da revista:
"O surrealismo carrega consigo uma
forte veia política por figurar em um período entre as duas guerras mundiais.
Nesse sentido, traduz os anseios daquela época, pois não tinha como se manter
uma arte racional frente à barbárie do conflito armado. Sua manifestação é
influenciada pela ascendente Psicanálise, defendida por Freud, fazendo evocar o
inconsciente humano por meio da arte. Desta forma, o surrealismo rompe com as
barreiras da lógica ao misturar sonho e realidade, criticar o sentido concedido
às coisas e transgredir os padrões sociais. Esse modelo, defendido em
manifestos escritos por André Breton, tanto em 1924 quanto em 1930, valoriza a
experimentação, a ausência de regras e a pluralidade de leituras poéticas. As obras surrealistas buscam afetar o público,
fazendo-o sentir diferentes intensidades a partir de momentos de introspecção e
reflexão. Ao se tornar uma arte livre, torna-se também um marco na história" (MC).
"O movimento surrealista, sem
dúvidas, teve seu auge entre as décadas de 1920 e 1960, sendo constantemente
lembrado pelas obras de nomes como Salvador Dalí, René Magritte, Joan Miró, Max
Ernst, Luis Buñuel, Marc Chagall, Leonora Carrington e até mesmo Frida Kahlo.
Embora associado a esse período, o legado surrealista seguiu influenciando
diversas produções culturais até hoje. Tornou-se mais difícil encontrar
artistas que se consideram surrealistas, porém os preceitos da corrente
artística são utilizados para a concepção de inúmeras obras, da cerâmica à pintura,
do videoclipe ao longa-metragem, da literatura à moda" (MC).
"O cinema foi um dos principais
propulsores da arte surrealista no mundo. Entendia-se essa linguagem como o
ambiente propício para borrar os limites entre sonho e realidade. O conceito de
“livre-associação”, de Freud, também foi bastante utilizado nos filmes
surrealistas, encorajando o espectador a relacionar as confusas imagens com
suas possíveis interpretações. Os clássicos do cinema surrealista são assinados
pelo diretor Luis Buñuel, desde o famoso curta-metragem “O cão andaluz” (1929)
até a retratação de um brutal experimento social em “O anjo exterminador”
(1962). A mesma construção de experiência cinematográfica é observada em filmes
das décadas seguintes, como “O ano passado em Marienbad” (1961), “O discreto
charme da burguesia” (1972)”, “Querelle” (1982), “Naked lunch” (1991), “Um
sonho encantado” (2006) e “Mãe!” (2017). A proposta de remontar histórias como
um quebra-cabeças, confundindo o público, pode ter reflexos surrealistas na
contemporaneidade, desde “Amnésia” (2000), cuja trama é conduzida do final para
o início, até seriados como “Dark” e “1899”, que misturam linhas temporais e
deixam inúmeras pontas soltas. Um dos mestres do surrealismo contemporâneo é o
diretor David Lynch. Sua filmografia inclui poucas produções consideradas
tradicionais, uma vez que o restante são filmes abertos para todo tipo de
leitura, como “Veludo azul” (1986), “A estrada perdida” (1997), “Cidade dos
sonhos” (2001) e “Império dos sonhos” (2006). Além, é claro, da série “Twin
Peaks”. O próprio Lynch, durante as gravações de “Império dos sonhos”, chegou a
afirmar que não tinha um roteiro prévio e foi filmando cenas e fragmentos sem
saber como esses pedaços se conectariam na ilha de edição. Logo, podemos
perceber que as obras de inspiração surrealista não são lógicas e racionais,
inclusive, criticam esse tipo de pensamento. As pessoas procuram pelo surreal
quando querem fugir da realidade, a fim de despertar outras emoções e deixar a
razão de lado. Essa busca se faz presente na contemporaneidade e deve seguir
como algo inerente ao ser humano" (MC).
A edição completa no formato flip pode ser visualizada
aqui. A matéria se encontra nas páginas 32 a 36.